terça-feira, 18 de março de 2008

Aquele tal de movimento "Cansei"

Os dois textos abaixo são sobre o Cansei, movimento que felizmente não vingou, e sobre o qual quase não se fala mais atualmente. Mas, mesmo assim, faço questão de postá-los, pois a onda pode voltar. O primeiro é uma carta, publicada no Painel do Leitor do jornal Folha de S.Paulo em 5 de agosto de 2007. A divulgação da minha indignação na Folha animou-me a escrever algo maior, e o segundo texto é justamente esse algo maior, um artigo publicado no Correio da Cidadania em 29 de agosto de 2007.

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Folha de S.Paulo - Painel do leitor - São Paulo, domingo, 5 de agosto de 2007

Não cansei, enchi o saco. Enchi o saco de ver pessoas dormindo na rua, passando fome, sede ou frio; de ver crianças e idosos nas ruas, abandonados, sem educação ou saúde; de assistir a seres humanos privados da mínima dignidade bem debaixo do nariz daqueles que hoje, com uma hipocrisia sem tamanho, tentam se vender como "indignados". Cansados estão os negros, os índios, os homossexuais e todos os outros grupos historicamente discriminados e excluídos. Enchi o saco de ler cartas de sujeitos da classe média que ousam achar que sustentam o Brasil. É com o suor e o sangue do povo que este país sobrevive. A injustiça está em alguns terem muito, e outros não terem nada. Se as elites não querem pagar mais impostos que o restante da população, por que não se distribui a renda de maneira igualitária? Aposto que muitos necessitados trocariam uma vida de miséria isenta de impostos por uma vida em condições dignas - ainda que o Leão lhes dê uma bela mordida. Eis que surge o movimento "Enchi o saco", em oposição ao "Cansei" e ao "Cansamos".

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Não cansei, enchi o saco

Após anos de corrupção e de uma política aeroportuária desleixada, não foi sem surpresa que o Brasil recebeu, na última semana de julho, o lançamento do “Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros” – o famigerado “Cansei”. O movimento pretende-se “apartidário”, mas as circunstâncias acabam impedindo que essa inverdade se prolifere, e a pergunta que não quer calar é: onde estavam os “cansados” em tempos de crise do governo FHC? – mas, ainda que essa pergunta quisesse ser calada, não encontraria resposta plausível. Dizem que a população está deixando o comodismo. Dizem até que é melhor revoltar-se tarde do que nunca. Lorota. As verdadeiras razões estão bem guardadas, talvez em cofres de bancos na Suíça.

Dirigido pela OAB-SP e com o apoio de vários setores a serviço da elite – como FIESP, FEBRABAN e outros – o movimento ganhou força ao se aproveitar, de maneira baixa e oportunista, do caos aéreo que tem assolado o país. Até o mensalão foi tirado do baú conservador. (Hoje, certamente, o lulo-petismo se arrepende profundamente por não ter inventado um nome criativo para a compulsiva corrupção tucana, pois “corrupção” e “roubalheira” são palavras muito genéricas.) Sem respeitar o sentimento dos envolvidos na tragédia, a direita “rebelde” aproveitou o acidente da TAM para realizar o marketing de seu movimento. Muitos, de maneira inocente, caíram nessa ladainha, como se cai no golpe do bilhete premiado, e engrossaram as fileiras do “Cansei”.

Como era de se esperar, a reação do PT não demorou a acontecer. A Central Única dos Trabalhadores (CUT), que por muitos anos foi exemplo de luta e independência dos trabalhadores, transformou-se em guarda particular do presidente e foi quem assumiu a missão de se contrapor ao “Cansei”. Para tanto, lançaram o “Cansamos”, que, sem dúvida, soa melhor devido ao companheirismo sugerido pelo verbo no plural, mas que não vai além do marketing.

Aliás, a qualidade da propaganda petista tem evoluído à medida que a identidade política do partido se perde; já a direita, que parece não aprender, peca também pelo individualismo do nome-fantasia de sua articulação. As bandeiras do “Cansamos”, é verdade também, possuem um rótulo mais humanitário. Evocam, por exemplo, o “cansaço” em relação aos trabalhos escravo e infantil. Mas, contra isso, palavras não bastam e o governo Lula já mostrou de que lado da trincheira está ao dar aos usineiros – que em grande parte praticam o chamado “trabalho análogo à escravidão” – o status de “heróis”. O pior cego é aquele que não quer ver e, contra fatos, não há argumentos.

Para romper essa falsa polarização que tem ocorrido desde as últimas eleições é que surgiu a idéia de um movimento independente, o “Enchi o saco”. Não há eufemismo que atenue as injustiças que envolvem o Brasil. A intenção é mostrar que estamos cansados, sim, e faz tempo. Um de nossos objetivos é desmascarar o debate vazio que tomou conta da pauta de discussões na sociedade. Este é um chamado para que aqueles que, há anos, resistem bravamente não sejam ludibriados por nenhum dos lados desse debate inócuo.

Enchemos o saco da corrupção do governo Lula assim como já estávamos cheios da improbidade tucana. Enchemos o saco da política neoliberal – iniciada por Collor, aprofundada por FHC e continuada por Lula – que há anos tenta diminuir o papel social de um Estado que deveria controlar efetivamente o setor aéreo, sem deixar que empresas privadas arrisquem vidas a fim de garantir lucros cada vez maiores. Enchemos o saco da elite e da classe média aspirante à elite, que ignoram a miséria que está presente em grande parte da população.

Estamos cansados, é verdade, mas não a ponto de deixar de ocupar universidades, realizar greves e paralisações, ir às ruas em passeatas ou manifestações por um mundo mais justo. Continuar na luta em CAs, DCEs, partidos políticos e sindicatos combativos, entre outros movimentos sociais, é o que é preciso ser feito. O resto é conversa mole.

Este texto foi publicado originalmente no Correio da Cidadania, em 29 de agosto de 2007. Disponível em:

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