sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Um miniconto que é só o começo

Posto abaixo um miniconto que publiquei no Folhateen, caderno adolescente da Folha de S.Paulo, na seção Você é o Contista. Quem for assinante do jornal ou do UOL pode acessá-lo clicando aqui.

Digo que este miniconto é só o começo porque descobri que escrevê-los (independentemente do tamanho) é uma necessidade. Quando escrevi este, estava imerso em duas leituras interessantes: Gonzos e parafusos, de Paula Parisot, e A dama do cachorrinho e outros contos, de Anton Tchekhov. Fontes de inspiração, recomendo.

Tchekhov está morto (vivo em nossos corações, ok) e, ainda que habitasse o céu, o inferno ou qualquer outro lugar, não poderia ler "Uma loucura" pelo simples fato de não dominar o idioma português (até a data de seu falecimento, ao menos). Então, fico à vontade para dedicá-lo à vivíssima e brasileiríssima Paula. Com carinho.


Uma loucura

Fernando assistia a uma aula qualquer. Sua atenção, no entanto, estava voltada ao seminário que teria de apresentar ainda naquele dia. Professora brava, matéria difícil e timidez, uma combinação perigosa e preocupante.

Estava inquieto, repassando mentalmente pela trigésima vez o roteiro da apresentação. Perdera-se por longo tempo no labirinto da própria cabeça, passeio que andava ocorrendo com alguma frequência.

De súbito, sobressaltou-se. Constrangido, espiou ao redor com cautela, à procura de qualquer indício de que seu devaneio houvesse sido notado. Envergonhado, imaginava se por acaso sua boca emitira algum som ou se movera, se sua expressão facial havia mudado bruscamente ou coisa pior.

A conversa consigo mesmo havia sido bastante acalorada, pensava se a alteração de sua respiração havia sido percebida. Como saber? Não sabia.

No fundo, a única coisa que pensava saber com certeza é que estava ficando louco. Mas, enquanto ninguém percebesse, estaria tudo bem. Afinal, um louco que é louco apenas para si mesmo não é um louco de verdade. Ao contrário, talvez seja até lúcido demais...

Guia politicamente raso da história do Brasil


Já faz mais de um mês que chegou às livrarias de todo o país o Guia politicamente incorreto da história do Brasil. Antes disso, no entanto, eu já havia tido acesso a seu conteúdo e propósitos. E por que escrevo sobre ele somente agora? Por ter terminado de ler? É claro que não, não foram todos os capítulos que li até o fim, e por falta de tempo ou de estômago nunca consegui avançar mais de três ou quatro páginas numa tacada só.

Mas asseguro que li mais do que o suficiente para escrever algumas linhas a respeito. E o faço só agora porque foi agora que o livro chegou às listas de mais vendidos dos grandes jornais e revistas brasileiros, o que de certo modo me preocupa. A despeito da riqueza da forma, o conteúdo é bastante problemático. Vejamos por quê.

"Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias [...] escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos" é o que promete o autor, Leandro Narloch, ex-repórter da revista Veja – e não poderia mesmo ter saído de outro lugar. Ele se autoproclama membro do que considera a "nova historiografia que ganha força no Brasil", que vai contra o "politicamente correto". Traduzo: trata-se de uma movimentação revisionista que busca dar respaldo a uma visão elitista de mundo e que engloba do caçador de livros didáticos "hereges" Ali Kamel ao pessoal que considera branda a ditadura que neste país prendeu, torturou e matou.

A provocação do autor até funciona, quem na vida aprendeu alguma coisa sobre história não tem mesmo como não ficar furioso. O que enfurece de verdade, no entanto, não são as posições em si, frágeis, mas o modo como são apresentadas. Não vou me estender muito, deixaria isso a cargo de historiadores ou jornalistas de verdade, caso eles levassem a sério tamanha petulância. Não vão, eu sei, então faço aqui as vezes de ao menos registrar o repúdio. E o faço como estudante militante de esquerda, deixo claro, porque não pretendo me esconder atrás de falsa imparcialidade. E me defendo de antemão: apesar de comunista, não como, nunca comi e nem pretendo comer criancinhas. Nem torturar pessoas inocentes ou fazer uma revolução que institua pela força um governo tirânico no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo.

A minha discordância com relação à obra eu tentarei apresentar brevemente, em linhas gerais, sem chavões ou pretensão de certezas. Narloch é do tipo que acredita em verdades absolutas. Para ele, existem os fatos históricos e as distorções. Os fatos, é claro, são aqueles que ele metafisicamente reconhece como tais. E as distorções seriam obras de comunistas sedentos de poder ou de esquerdistas de qualquer espécie. O que há entre nós é uma concepção diferente da história. Expliquemos.

Nós, seres humanos, vivenciamos os fatos e, a partir dos nossos sentidos (excetuando-se o sexto deles), captamos a realidade que concretamente a eles se apresenta. Quando colhemos sensações e passamos a interpretá-las, utilizamos os instrumentos de que dispomos, nossos valores, experiências etc. Eles funcionam como filtros, que invariavelmente fazem com que ao fim tenhamos uma versão dos fatos. Não somos "puros" e esse processo de aquisição de conhecimento não poderia resultar em nada além do que mera interpretação, que pode estar mais próxima do real de acordo com a maior abundância de instrumentos que o indivíduo tenha à sua disposição, bem como a vontade de empregá-los.

Narloch, em sua cruzada contra o que chama de "historiografia militante", se esquece de que somos todos portadores de uma ideologia, sistema de idéias que serve como bússola para que o indivíduo encontre seu espaço na sociedade. Os "apolíticos" e "apartidários", conscientemente ou não, agem de forma igualmente ideológica quando atacam os adeptos declarados de um projeto político. E o autor, ainda que não seja necessariamente fascista, é um jornalista de direita, mesmo que não admita. Talvez ele diga que essa divisão não mais existe, como faz a típica nova direita brasileira, pois sabe como soa mal defender bandeiras tão retrógradas em tempos em que a humanidade dispõe de tantos recursos para viver em plenitude, harmonia e igualdade.

É verdade que, com a queda do muro de Berlim e a conseqüente dissolução da União Soviética, o senso comum da década de 1990 foi tomado pela idéia neoliberal absurda de fim da história e das ideologias, com vitória final e irreversível do capitalismo, que seria a ordem natural das coisas, contra o comunismo que atentaria contra a natureza do homem. Era a crença equivocada de que o ser humano havia deixado de ser humano. Mas, mesmo assim, a tentativa dos poderosos de contar a versão deles da história nunca vingou efetivamente no país, pois sempre contamos com a resistência de intelectuais comprometidos com uma visão que contemplasse a voz daqueles a quem é negado o direito de expressão, ainda que tivessem por isso de enfrentar os privilegiados e muitas vezes abrir mão de seus interesses individuais. Não são infalíveis, é claro, mas uma interpretação equivocada não é necessariamente fruto de má-fé. Estamos falando de humanos, e não de vilões.

Quem mandava no Brasil durante o período ditatorial ainda manda hoje, embora tenha mudado o arranjo. O regime representativo da democracia formal atualmente em vigor abre possibilidades de transformação, como a chegada de um ex-operário ao poder, mas foi o medo dos donos do poder econômico de perderem efetivamente o político que permitiu tais concessões, mas as exigiu também do lado petista. É sabido que tanto ricos como pobres, embora preservem certa margem de liberdade em suas ações, estão presos a uma estrutura social herdada de muitos anos e de muitos homens, não se trata de mocinhos ou bandidos, mas de indivíduos desempenhando determinado papel social numa sociedade desequilibrada, que condiciona o sucesso de uns à necessária desventura de outros. É o sistema capitalista competitivo que alguns consideram o melhor que o ser humano pode conceber. Sinceramente, tenho a ligeira impressão de que somos um pouco menos medíocres do que isso.

A estratégia do Narloch é bastante simples: narrar os fatos como se fossem óbvios e tratar os oponentes como se a estupidez deles fosse igualmente evidente, mesmo que para isso tenha sido obrigado a preencher lacunas com a imaginação para tornar o texto fluido e atraente. Ele abusa no uso de adjetivos, chegando ao descalabro de atribuir toda a guerra do Paraguai ao "vaidoso, cruel e louco" presidente Solano Lopez, ainda que para tanto tenha precisado desprezar todo o estudo das relações internacionais, que consideram essa forma de análise (primeiro imagem, segundo o teórico estadunidense Kenneth Waltz) insuficiente. É tão ridículo quanto atribuir a Hitler toda a culpa pelo nazismo, mas Narloch não hesitou em escrever com coragem tamanha besteira. Talvez pelo fato de a folha de papel em branco que esteve postada à sua frente, coitada, não ser dotada da capacidade de replicar.

Publicado originalmente no Correio da Cidadania, em 27 de janeiro de 2010.