sábado, 1 de março de 2014

O dia em que tentaram fazer de mim "vândalo"


o braço ainda dói e as mãos ainda tremem um pouco, mas se faz necessário relatar o que se passou agora há pouco na manifestação contra a copa em sp. saí de casa hoje depois do almoço para o seminário "governar após junho", iniciativa do psol organizada pelo professor de filosofia da usp vladimir safatle, pré-candidato do partido ao governo do estado. a ideia é, com uma série de atividades como essa, preparar o programa de governo de sua provável candidatura. quando o debate acabou, por volta de 17h30, me juntei a um grupo de amigos que pretendia passar pela manifestação contra a copa, cuja concentração estava marcada para ali perto. estávamos na câmara dos vereadores da cidade e o ato partiria da praça da república. mesmo não concordando com a palavra de ordem "não vai ter copa" (porque ela vai acontecer independentemente de nossa vontade, e o mais inteligente é levantar junto à população o questionamento acerca de quem ganha com essa copa etc.), nos dirigimos a ela e por lá ficamos. desde antes de chegar a ela, no entanto, notamos que havia algo de muito errado. os arredores da concentração da manifestação estavam tomados pela pm (com ônibus da corporação já estacionados, inclusive, ali pela biblioteca mário de andrade). de acordo com os números divulgados pelo uol que acabo de ver, foram mobilizados mil pms na operação. e, segundo a pm, havia mil manifestantes... com isso, é possível ter uma ideia da composição da marcha, que visualmente dava a impressão de ser dos próprios soldados. andávamos meio à margem, um pouco à frente do grosso do ato e próximos da calçada. outra coisa muito estranha que pudemos notar: os pms, conforme o ato se movimentava, foram formando um cordão de isolamento em cada lado da passeata, virtualmente confinando os manifestantes na rua, enquanto eles próprios seguiam a linha da calçada. apesar dessa imagem ameaçadora, não nos ocorreu sair dali, tendo em vista que o ato estava relativamente pequeno (ainda mais se comparado ao efetivo completamente desproporcional da pm) e transcorria até esse momento de modo pacífico, sem qualquer indício de que poderia se tornar violento. foi nesse momento, em que a passeata passava por ruas do centro ladeadas com fartura pela pm, que começou uma gritaria muito suspeita um pouco atrás de onde estávamos. com isso, os adeptos da tática black bloc correram procurando o foco da possível confusão (para quem não sabe, eles se autoatribuem a função de proteger os manifestantes da polícia). pronto. a correria era o sinal verde que a pm parecia estar esperando. enquanto os manifestantes corriam perdidos cada um para um lado, a pm fechou o cerco já preparado sem procurar por nada, encurralando indiscriminadamente todos os que estavam na rua a cacetadas. mesmo com os braços erguidos e as mãos próximas à cabeça, tomei uma pancada no braço esquerdo. deitado no chão e já rendido, levei um chute e vi muitos outros manifestantes sendo intimidados das mais diversas formas, mesmo já não oferecendo qualquer perigo ou resistência. tudo isso aconteceu muito rápido, a pm parecia saber muito bem o que estava fazendo. acho que não levou dez minutos até todos estarem completamente encurralados e rendidos, e tendo ainda por cima de respirar spray de pimenta maldosamente lançado pela pm, que já tinha então o controle da situação. após isso, a pm foi tirando um por um do cerco e revistando, para enfileirar do lado de fora, junto às paredes dos prédios e estabelecimentos fechados. pelo que pude ver por entre as pernas dos pms, os primeiros tirados do cerco (em geral mascarados ou vestidos de modo "suspeito"), foram arrancados violentamente dali, agredidos e atirados ao chão do lado de fora, para terem suas mãos presas às costas com "enforca-gato", sem qualquer preocupação com a circulação de sangue. isso tudo deve ter ocorrido por volta de 19h. ficamos, sem saber o que nos aconteceria, por cerca de duas horas (o último ônibus com detidos deve ter saído do local por volta de 21h). ficamos sob chuva, proibidos de usar o celular e sem acesso a qualquer tipo de informação/comunicação. a imprensa e os advogados que tentavam acompanhar a revista e as eventuais detenções, foram violentamente tirados de perto e dispersados. adeptos da tática black bloc não encurralados tentaram furar o bloqueio da pm em direção aos rendidos, o que deu ensejo a mais uma ofensiva por parte da pm. quando questionados, pms ainda nos ironizavam, evidenciado o entulho da ditadura que representam: "não quiseram vir para a manifestação? agora aguentem" (ouvi isso mais de uma vez). o que estava em jogo ali era o direito de qualquer cidadão à livre manifestação, pois no discurso dos pms estava claro que manifestações populares são, para eles, um problema em si, independentemente de "violentas" ou "pacíficas" (a de hoje era pacífica até a ação da pm). coisas estranhas não pararam de acontecer: de repente, um superior da pm passou gritando "mais algum policial ferido?", enquanto amparava um pm que fingia cambalear -- o teatrinho arrancou risos de perplexidade entre quem já estava havia tempo sentado no chão e sabia não haver a menor chance de agressão a pms naquela correlação de forças. de onde eu estava, a ponta do cerco, pude ver de dentro e depois também de fora dezenas de revistas a mochilas. em nenhuma delas, mesmo na do anarco-punk mais maluco, foi encontrada qualquer coisa ilícita. no entanto, algum tempo depois, apareceu um pm carregando uma sacola com rojões supostamente encontrados com manifestantes... no fim, para coroar o festival de arbitrariedades, a triagem para escolher quem seria detido e quem seria liberado seguiu um critério completamente absurdo que procurava misturar a cor da pele com a da camiseta (os de preto, afinal, podiam ser do black bloc, mesmo que brancos). fui liberado com a seguinte frase: "este aqui tem cara de nerd, deve ser só estudante, pode liberar". enquanto saía com mais alguns, pude ver dois amigos que ficaram e com os quais havia perdido contato no momento da correria -- um de camiseta preta e outro de camiseta vermelha, mas ambos não-brancos (e isso porque não existe mais racismo no brasil). nós liberados, quando saíamos do cerco da pm, recebemos a seguinte saudação como despedida por parte de um pm: "boa noite e até a próxima manifestação, se deus quiser". "covardes!", a resposta que morreu na boca sem ser pronunciada. passar por isso tudo serviu, ao menos, para justificar a minha saída de casa hoje depois do almoço: o programa do psol para o estado de sp prevê a desmilitarização da polícia (porque do que precisamos não é de mais poder para quem já abusa demais da autoridade que tem, e sim o contrário).

Íntegra do relato escrito por mim no próprio dia 22/02/2014 e publicado originalmente em meu perfil no Facebook: https://www.facebook.com/max.gimenes.1/posts/765830980094974. Quanto à foto, eu a encontrei por acaso na internet e achei que seria o caso de divulgá-la também, para ilustrar meu ponto de vista enquanto autor do texto.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A novela das nove termina, mas e a novela do beijo gay na novela?

Em certos meios, não se pode falar de telenovela sem colocar em risco a reputação. Neles, acredita-se que é possível combater a qualidade muitas vezes bastante duvidosa dessas produções ignorando-se solenemente sua existência.

Trata-se de evidente equívoco, tendo-se em vista que a telenovela do “horário nobre” continua sendo o carro-chefe da programação da maior emissora de TV do país, cujo sinal hoje já cobre a quase totalidade do território nacional. Com esse alcance, a telenovela das 21h da Rede Globo é hoje muito provavelmente um dos principais “bens culturais” fruídos pelos brasileiros, aqueles destinados à satisfação da fome do espírito. E isso tem repercussões na hegemonia dos valores vigentes, bem como consequências na formação do imaginário das gerações que crescem assistindo a ela. Trata-se, pois, de fenômeno digno de alguma atenção.

E atentos a isso existem muitos pesquisadores, e não é difícil encontrar em bancos científicos artigos que abordem o tema. Aqui, no entanto, interessa outra coisa: refletir breve e livremente sobre a polêmica do beijo gay, que pode ir ao ar logo mais no capítulo de encerramento de “Amor à vida”.


A primeira coisa interessante a notar é como o casal gay ganhou centralidade na trama, no lugar da mocinha loira e bonitona e do mocinho fortão. Desgastado, esse estereótipo não conseguiu cativar, e um defeito das telenovelas (sua abertura às “coerções do momento”, que remonta à literatura de folhetim do passado) ajudou a salvar sua audiência: ao perceber que o conflito central não estava vingando, o autor (provavelmente baseado em acuradíssimas pesquisas de opinião da emissora e pressionado pela necessidade de resultados) rastreou onde estavam os possíveis substitutos. E então encontrou Félix, que acabou sofrendo uma vertiginosa mudança de orientação, passando de vilão sem coração a herói apaixonado – o qual, de quebra, ainda terminou arrebatando para si a verdadeira “mocinha” (pela ingenuidade etc.) da história, o personagem Niko. Ainda estamos no registro dos estereótipos, é verdade, mas de algum modo renovados.

O artista, seja ele um autor de romance ou de telenovela, deveria estar empenhado em apresentar para a sociedade em que vive uma configuração do que acredita serem as grandes verdades de seu tempo. Se bem sucedido, pode contribuir com a autoconsciência de uma sociedade a respeito de sua própria história. Para tanto, ele não pode ter como preocupação central agradar – seja uma “causa”, um superior ou o todo-poderoso “mercado”. Como diz o ditado, não é possível servir a dois senhores ao mesmo tempo – e, na criação artística, a escolha de uma preocupação trai as exigências da outra, invariavelmente.

Engana-se, porém, quem vê nas “coerções do momento” apenas a vontade do público calcada no senso-comum. E aqui as telenovelas se distanciam dos folhetins. Enquanto estes estavam de fato diretamente vinculados a seus leitores, que com assinaturas mantinham os jornais que publicavam as histórias, atualmente não é preciso pagar para viabilizar as novelas – são os anunciantes que o fazem, para terem nos intervalos (e às vezes também dentro delas) a propaganda de suas mercadorias. Estabelece-se então uma dupla exigência (que desloca a importância do público de fim para meio): levar ao ar uma trama que consiga, ao mesmo tempo, despertar a atenção do telespectador, sem no entanto despertar nele nada além disso, para não colocar em risco a estabilidade da ordem social e portanto os lucros das grandes empresas que financiam essas produções (grande exemplo é o caso do merchandising do Big Brother Brasil na novela, ao melhor estilo “falem mal mas falem de mim”, mostrando que o importante não é ser bem ou mal visto, mas simplesmente visto, para que os índices de audiência justifiquem o investimento do anunciante).

Nesse sentido, lança-se mão dos mais variados recursos de exagero, que rendem aos roteiros das telenovelas avaliações pouco elogiosas da crítica, como a de promover muitas vezes “dramalhão” e “humor pastelão”. Há também a megalomania em querer passar por todos os temas polêmicos (e com isso chamar atenção), sem tratar seriamente nenhum deles e ainda, ao final da novela, deixar a sensação conformista de que, no fim das contas, tudo (não importa o que) se resolverá. E isso para não tocarmos nas conseqüências danosas à verossimilhança das tramas que causam as já apontadas mudanças drásticas nos personagens. Se é interessante que haja o deslocamento da contradição bem X mal para dentro deles (garantindo-lhes, com isso, complexidade e densidade psicológicas, em vez do maniqueísmo pueril da “gente de bem” contra o mal), a falta de comprometimento com a coerência do enredo e dos personagens tornam tudo ainda mais “líquido”, dificultando o estabelecimento já difícil de elos e de afetividade em nossa contemporaneidade – o “outro”, volúvel e imprevisível, passa a ser visto com reservas, como ameaçador.

As telenovelas da Rede Globo são, como sabemos, produtos da chamada indústria cultural. Ou seja, servindo não como arte que problematiza a realidade, mas como mercadoria que nos entretém enquanto as consumimos (deixando os problemas por se resolver na realidade, sem que ninguém tenha tempo para eles), a preocupação central da novela é agradar – no caso, aos anunciantes que pagam pelo comercial e à emissora que recebe esse dinheiro. Não deve, pois, ser vista como “vanguarda”, ainda que leve hoje à tela o tão aguardado beijo gay (ela não faria isso se a correlação de forças entre valores de respeito e de preconceito, na prática, fosse outra). Também não se deve comparar o beijo gay ao lésbico, mais “palatável” a uma sociedade machista que acha até bacana “duas mulheres se pegando” (esta última modalidade de beijo já foi ao ar em novela recente do SBT).

A exibição de um beijo gay na novela de hoje pode e deve ser comemorada, mas não como uma nova conquista, e sim como um reconhecimento tardio de conquistas de toda uma comunidade que luta há anos, entre outras coisas, por seu mais elementar direito de amar e de ter suas manifestações de afeto socialmente reconhecidas. É talvez um animador sinal dos tempos, no sentido de uma melhora nos valores do senso-comum. Mas há ainda longo caminho a percorrer – afinal, a demonstração de afeto de um beijo gay ainda é mais polêmica do que a demonstração de ódio e violência, implicada por exemplo na cena das dez facadas da vilã da novela em seu ex-amante indefeso, amarrado a uma cama.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Um miniconto de Natal

Depois de anos reproduzindo aqui a minha crônica "Quando teremos um ano novo de verdade?" e o conto "A árvore de Natal na casa de Cristo", de Fiódor Dostoiévski, resolvi tentar algo diferente neste ano. Espero que perdoem a pretensão e reconheçam no gesto a melhor das intenções: o miniconto que compartilho abaixo é, para todos que eventualmente leem este blog, o meu presente de Natal.


***


Controlando a maluquez

Mais um Natal chegava. Natal, aniversário, Dia das Crianças, tanto fazia, B.M. gostava era de ganhar presentes. Gostava ainda mais quando eram brinquedos. B.M. gostava mesmo era de brincar.

E o brinquedo podia ser qual fosse, B.M. brincava com tudo da mesma forma que brincava com nada: usando a imaginação. Se tinha apenas um boneco, a cabeça encarregava-se de imaginar mais um punhado deles. Se o que tinha à mão era um carrinho, não demorava então a metê-lo numa sinuosa e cheia pista de mentira. No fim das contas, os brinquedos sempre se perdiam por entre os dedos. E as brincadeiras tinham lugar lá dentro de sua cabeça.

Com o passar do tempo, B.M. percebeu que o espaço para sua imaginação vinha sendo cada vez mais restringido. Ninguém tolerava mais que se recostasse sozinho a um canto para cuidar dos devaneios. Acontece que B.M. não suportaria viver neste mundo esquisito sem poder dar algumas escapulidas. Precisava agora procurar outra maneira de seguir em frente.

Foi assim que B.M. começou a ler os devaneios dos outros. E a escrever os seus próprios devaneios. Enfim, descobriu a literatura... B.M. ainda hoje gosta de ganhar presentes. Gosta mais quando são livros. B.M. gosta mesmo é de ler...

Texto publicado originalmente no jornal O KULA.

sábado, 29 de outubro de 2011

A autonomia da USP!*

Por Lincoln Secco, Livre Docente em História Contemporânea na USP

Não é comum ver livros como armas. Enquanto no dia 27 de outubro de 2011 a imprensa mostrou os alunos da FFLCH da USP como um bando de usuários de drogas em defesa de seus privilégios, nós outros assistimos jovens indignados, mochila nas costas e livros empunhados contra policiais atônitos, armados e sem identificação, num claro gesto de indisciplina perante a lei. Vários alunos gritavam: “Isto aqui é um livro!”.

Curioso que a geração das redes sociais virtuais apresente esta capacidade radical de usar novos e velhos meios para recusar a violação de nossos direitos. No momento em que o conhecimento mais é ameaçado, os livros velhos de papel, encadernados, carimbados pela nossa biblioteca são erguidos contra o arbítrio.
Os policiais que passaram o dia todo da ultima quinta feira revistando alunos na biblioteca e nos pátios, poderiam ter observado no prédio de História e Geografia vários cartazes gigantes dependurados. Eram palavras de ordem. Algumas vetustas. Outras “impossíveis”. Muitas indignadas. E várias poéticas... É assim uma universidade.

A violação da nossa autonomia tem sido justificada pela necessidade de segurança e a imagem da FFLCH manchada pela ação deliberada dos seus inimigos. A Unidade que mais atende os alunos da USP, dotada de cursos bem avaliados até pelos duvidosos critérios de produtividade atuais, é uma massa desordenada de concreto com salas superlotadas e realmente inseguras. Mas ainda assim é a nossa Faculdade!

É inaceitável que um espaço dedicado á reflexão, ao trabalho, à política, às artes e também à recreação de seus jovens estudantes seja ameaçado pela força policial. Uma Universidade tem o dever de levar sua análise crítica ao limite porque é a única que pode fazê-lo. Seus equívocos devem ser corrigidos por ela mesma. Se ela é incapaz disso, não é mais uma universidade.

A USP não está fora da cidade e do país que a sustenta. Precisa sim de um plano de segurança próprio como outras instituições têm. Afinal, ninguém ousaria dizer que os congressistas de Brasília têm privilégios por não serem abordados e revistados por Policiais. A USP conta com entidades estudantis, sindicatos e núcleos que estudam a intolerância, a violência e a própria polícia.

Ela deve ter autonomia sim. Quando Florestan Fernandes foi preso em 1964, ele escreveu uma carta ao Coronel que presidia seu inquérito policial militar explicando-lhe que a maior virtude do militar é a disciplina e a do intelectual é o espírito crítico... Que alguns militares ainda não o saibam, é compreensível. Que dirigentes universitários o ignorem, é desesperador.

(*Ótimo texto do ótimo professor Lincoln Secco, para ajudar a entender a polêmica em torno da presença da Polícia Militar dentro do ambiente universitário.)

sábado, 22 de outubro de 2011

Lições de Hogwarts aos estudantes da Universidade de São Paulo


“O mundo não se divide entre pessoas boas e Comensais da Morte”, disse a Harry Potter seu padrinho Sirius Black no quinto filme da série – palavras arrancadas, salvo engano da memória, da boca do professor Remus Lupin no terceiro livro.

Antes que este texto suscite algum tipo de expectativa inapropriada, vale a advertência de que não há aqui pretensão alguma de crítica de cinema nem tampouco de crítica literária sistematizada e aprofundada ou de estudo sociológico metodologicamente rigoroso. O que se pretende é apenas compartilhar considerações soltas acerca da série de livros “Harry Potter” bem como sugerir alguma relação entre os movimentos estudantis bruxo e trouxa. Tudo isso faz parte de um esforço paralelo maior de interpretação e compreensão da obra que, infelizmente, não é possível reproduzir nestas escassas linhas.

“Harry Potter” não é uma narrativa arranjada segundo qualquer tipo de maniqueísmo pueril. Ela é em certo sentido complexa – e, quando digo “complexa”, tenho em mente instrumentos apropriados, nem sempre da maneira mais ortodoxa, da obra do brilhante crítico Antonio Candido. Para ele, a “formação do homem” é função da literatura, não no sentido de “pedagogia oficial”, mas como algo que “age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela – com altos e baixos, luzes e sombras”, o que “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. Para desempenhar tal função, alguma complexidade é requisito, e acho que neste ponto a autora J.K. Rowling foi de alguma forma bem-sucedida. A leitura de “Harry Potter” a seu modo educa.

A compreensão que sugiro da narrativa é enquanto arranjo dialético tecido a partir das sucessivas contraposições entre as visões de mundo conservadora e progressista (polarização direita X esquerda, se preferirmos), que culminam ciclicamente em duelos entre Harry Potter e Lord Voldemort. Teríamos então, de um lado, uma visão de mundo democrática e igualitária, aberta ao aprimoramento do ser humano e suas relações por meio da razão e da reflexão crítica. E, de outro, uma assustadora visão em torno de valores de disciplina cega e superioridade bruxa em relação às outras criaturas mágicas (outras civilizações) e aos chamados trouxas (idem), bem como à miscigenação envolvendo os primeiros e qualquer um dos dois últimos “outros”.

É a partir do volume “Harry Potter e a Ordem da Fênix” que passamos a notar um maior amadurecimento político na série. Avançando para a questão mais propriamente estudantil, podemos arriscar aqui algumas curiosas analogias com relação à nossa USP: Armada de Dumbledore como reação à intervenção ministerial em Hogwarts (ocupação da Reitoria em 2007 como resposta à violação da autonomia da USP), nomeação de Dolores Umbridge como “alta inquisidora” de Hogwarts e sua missão de conservar o saber teórico descolado da realidade prática (nomeação de João Grandino Rodas como reitor e sua visão igualmente conservadora), brigadas inquisitoriais (“policiais-estudantes” recentemente anunciados como medida de segurança pela reitoria), rejeição à presença de dementadores em Hogwarts (polêmica em relação à entrada da PM na USP) etc.

A instituição máxima responsável por produção e divulgação do “saber” numa sociedade, bruxa ou trouxa, tem grandes responsabilidades como reduto de pensamento crítico (e a passagem do último livro em que Hogwarts se defende das forças das trevas é de arrepiar nesse sentido). Acontece que o nosso mundo também não se divide entre pessoas boas e a direita, por assim dizer, e idealizar o contrário não é senão sinal de imaturidade. Resgatando desta vez o Candido militante: o socialismo para ele, por exemplo, não é forma de pensar, mas sobretudo uma questão ética, de conduta. Ou seja, seriam as escolhas que fazemos (não na retórica mas frente aos dilemas concretos com os quais nos deparamos no dia a dia da vida em sociedade) que demonstram quem de fato somos e de que lado verdadeiramente estamos.

“Se eu fosse Você-Sabe-Quem, seria assim que eu gostaria que você se sentisse, sozinho, pois desse modo não seria uma ameaça”, disse a Harry Potter sua encantadora colega Luna Lovegood. Quando Lord Voldemort reuniu seguidores e se infiltrou no Ministério da Magia, foi apenas por meio da organização coletiva, a despeito de suas eventuais imperfeições, que Harry e seus companheiros conseguiram resistir, e não de acordo com o individualismo largamente professado em nosso mundo pretensamente “pós-ideológico”.

Sendo assim, podemos dizer que a militância de esquerda no movimento estudantil, apesar dos inevitáveis desapontamentos que nos traz em relação a pessoas e situações, vale a pena. Por um lado, porque nos torna mais fortes na luta para fazer valer nossos ideais (para ter êxito, no entanto, toda forma de dogmatismo e sectarismo precisa ser afastada, haja vista o exemplo da Armada de Dumbledore e mesmo o da Ordem da Fênix). Por outro, porque essa experiência na universidade, com suas luzes e trevas, ao menos nos prepara (como a boa literatura) para a dura vida fora dela.


(Texto originalmente publicado na terceira edição do jornal O KULA, p. 18.)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Meia-noite em Paris (ou a qualquer hora em qualquer lugar)

É claro que quando vamos ao cinema para assistir a um filme de Woody Allen não esperamos outra coisa a não ser um trabalho bem feito -- e isso ainda que você, assim como eu, não entenda lá muito da nossa querida sétima arte.

A propósito, é menos sobre a sétima arte, e mais sobre a sexta delas, a literatura, que pretendo discorrer um pouco neste texto. Num filme em que figuras como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Gertrude Stein aparecem, tal intuito me parece, aliás, bastante compreensível.

O protagonista do longa, Gil Pendler, é um estadunidense que, cansado de se prostituir como roteirista de Hollywood, decide escrever um romance e tentar, dessa maneira, tornar-se escritor. Ele também está em vias de se casar com a bela Inez, com cuja família viaja, em férias, a Paris.

Às voltas com passos decisivos a dar em áreas importantes da vida, como amor e trabalho, Gil deixa-se levar um pouco pelo encanto da Cidade Luz. E isso muda tudo. Sem querer, ele descobre uma "caravana" que passa todos os dias à meia-noite para buscá-lo e levá-lo para a sua "Golden Age" (recorte de tempo e espaço da história da humanidade que idealizamos e no qual gostaríamos de viver -- no caso de Gil, a capital francesa dos anos 1920).

Dividamos agora aqui as considerações em dois momentos: a relação de um escritor com a literatura ocidental e seus cânones e a relação de um leitor qualquer com suas obras preferidas de tal literatura.

A começar pelo primeiro ponto, é necessário reconhecer o que é sem dúvidas uma louvável homenagem ao pensamento de alguém que no filme aparece apenas de passagem, abrindo numa das vezes a porta da "caravana" para Gil: Thomas Stearns Eliot, o T.S. Eliot, poeta e crítico literário britânico nascido nos EUA.

Para Eliot, os escritores vivos e mortos não se encontram propriamente separados numa linha sucessória hierarquizada, mas numa relação de quase "contemporaneidade". Em seu célebre ensaio "Tradição e o talento individual", ele chega mesmo a afirmar que "o passado deve ser alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado", o que é, em alguma medida, o que Woody Allen nos proporciona com sua admirável metáfora.

Quando discute com sua noiva após dias de visitas à "Golden Age", Gil profere palavras das quais Eliot certamente se orgulharia. Gil teria demonstrado possuir o que Eliot chamou de "senso histórico", indispensável a um bom escritor: a "percepção não apenas da qualidade de passado do passado, mas de sua presença". Ou, dito de outra forma, a um escritor é preciso viver "não no que é meramente o presente, mas o momento presente do passado" e estar "consciente não do que está morto [em relação ao passado] mas do que permanece vivo". Nisso o nosso candidato estadunidense a escritor pareceu se sair bem, e não deixa de ser curiosa a situação fantasiosa da entrega de seus manuscritos para leitura e parecer crítico de personalidades do passado, as quais, no entanto, permanecem vivas no universo da literatura e com as quais certamente temos muito a aprender -- ao menos na visão eliotiana.

Avançando agora para o segundo ponto: tudo o que foi dito acima está relacionado ao que Eliot pensava para um escritor. Mas não seria descabido trazer também essa noção de quase "contemporaneidade" para aqueles que são apenas leitores, e não necessariamente escritores. Afinal, é função da literatura educar o homem ao proporcionar a ele um amplo arco de experiências de vida não diretamente vivenciadas.

No caso do filme, Gil convive com críticos, escritores, pintores e demais figuras de relevo que habitaram sua "Golden Age", as quais lhe dão importantes ensinamentos em relação não apenas ao ato de escrever propriamente mas sobretudo no que diz respeito às inquietações mais amplas da vida e à forma de lidar com elas. Assim como sua noiva sai para dançar e se relacionar com alguém com quem julga estar aprendendo alguma coisa, Gil opta por encontros com grandes clássicos da literatura... Ele fazia isso à meia-noite em Paris. Nós, como qualquer um, podemos fazer isso a qualquer hora em qualquer lugar do mundo. Assim é a viagem literária.

"Meia-noite em Paris" pode até ser visto como uma declaração de amor à realmente bela capital francesa. Mas, se eu não estiver muito enganado, ele é também uma declaração de amor, tanto quanto ou até maior, à literatura.