segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Quando teremos um ano novo de verdade?

A crônica abaixo foi escrita na virada de 2007 para 2008. Começou a ser esboçada enquanto eu encarava a rodoviária do Jabaquara rumo ao Guarujá, onde passaria com familiares o réveillon. E foi terminada em janeiro, quando eu já estava novamente em São Paulo.

Na falta de algo novo para oferecer como voto de boas-festas, eu a reproduzo aqui, com ajustes, por se tratar de um texto que mantém a sua atualidade. Em março de 2008, eu a postei neste blog com o título "Será 2008 um ano novo de verdade?". Agora, creio que "Quando teremos um ano novo de verdade?" seja o título adequado, até porque, passados dois anos, de transformações profundas não vimos nem sombra.

O título em forma de interrogação não é à toa, é um convite a uma necessária reflexão. A minha resposta a ela é esta: espero tenhamos um ano novo de verdade logo, porque 2008 e 2009 deixaram muito a desejar. Somos capazes de muito mais. Com crises econômica, ambiental, energética, existencial etc., a construção de um outro mundo tem se mostrado não apenas possível como cada dia mais necessária. Mais e mais.


Quando teremos um ano novo de verdade?


Mais um fim de ano. Para mim, eles já somam 19. Dizem que agora tudo será melhor. Não acredito, tudo continua angustiantemente igual, ao passo que desalentadoramente diferente. Terminais rodoviários cheios e cabeças vazias. Como se o enorme barulho causado por conversa, criança ou pandeiro fosse capaz de nos preencher, de sufocar o silêncio constrangedor que insiste em nos lembrar, e sempre de modo inconveniente, de nossa impotência, nossos medos, nossos segredos, nossa imperfeição.

Celulares, milhões deles. Cada um com o seu, e todos melhores que o meu. Graças a Deus. Os aparelhos são trocados constantemente, assim como os amigos, os amores, o caráter. Viva a Era do Consumo Desenfreado. Agora a moda é ter celulares que tocam músicas em volume alto, para que todos possam ouvir – e quanto pior a música mais alto parece ser o volume do som. Onde foram parar os benditos fones de ouvido? As pessoas parecem não mais existir para si próprias, na verdade parecemos todos pobres coitados nos sacrificando para chamar a atenção dos demais. Todos. Capazes do mais deprimente e desesperado uivo em busca de olhares de admiração (profundamente gratos e aliviados, no entanto, diante de qualquer reação que ultrapasse o simples e inaceitável “pouco caso”). E como me incomoda ser obrigado a compartilhar dos barulhos dos outros. Não suporto nem sequer os meus próprios. Apareço, logo existo. Por quê?

Chegamos ao litoral sem notar o trabalho do motorista do ônibus, do vendedor de passagens, da atendente da lanchonete. Mas chegamos aonde queremos alegres e felizes, e em grande medida por causa deles. Eles não chegam aonde querem, não passam o Ano-Novo com as pessoas que amam. Nossa culpa?

Chega a hora. A mais esperada e curiosa de todas. À caminho da praia, mãos carregam garrafas cheias de champanhe. As mesmas mãos humanas, um pouco mais marcadas pelo trabalho forçado de uma vida precária, carregam sacos igualmente cheios. Sacos cheios de latas vazias. E cheios de sofrimento também. E talvez muito mais cheios de dignidade e esperança do que nós e nossas existências vazias vestidas de branco e preenchidas de champanhe. (Digo “nossas” pois também participo do ritual e carrego a minha garrafa, e não sei dizer exatamente se sinto mais prazer ou culpa por isso.)

Sorrisos branquíssimos porém falsos, narizes empinados, e a atenção toda voltada para o céu. É sempre assim, todos de olho no Céu, enquanto a miséria notória ao redor é ignorada, enquanto pessoas são pisadas aqui nesta Terra. Shows pirotécnicos iluminam o céu do presente. E nublam o céu do futuro. Mas para que se preocupar? É Ano-Novo, minha gente. E, no próximo ano, tudo será diferente. A preocupação com o meio ambiente só cai bem em determinados momentos, deixemos nossa responsabilidade ambiental guardada junto aos moletons e casacos de lã. Afinal, não sejamos radicais. Saibamos buscar o equilíbrio e a tolerância. É preciso aceitar um pouquinho de corrupção e hipocrisia de vez em quando. Tudo faz bem na medida certa, apenas o que é demais faz mal. Sinceridade demais, então, nem se fala, não é mesmo? Ah, como me custa essa lição... receio ainda ter um longo caminho a percorrer até realmente aprendê-la. E talvez nunca a aprenda de verdade.

Os fogos estouram e eu, máquina com defeito, compreendo meus semelhantes cada vez menos, o que me traz a dúvida perigosa de que talvez não sejamos tão semelhantes assim. Penso em como as futuras gerações vão nos ver como imbecis. Assim como nós rimos dos mais curiosos rituais do passado – ou seja, dos que destoam do nosso pretenso mundinho avançado e civilizado –, elas vão gargalhar de nós e de nossos ritos inexplicáveis. Pelo bem deles, espero que pensem assim e que riam até doer a barriga. E que barrigas absolutamente só doam por causa disso. Que sirvamos ao menos de exemplo do que não deve ser feito.

Enquanto isso, bebo o meu champanhe pela boca e pelo nariz. Bebo tudo rapidamente para me livrar o quanto antes desse símbolo de que pertenço ao lado nobre da festa. Acabo com a garrafa que me separa dos meus iguais. E, assim, consigo esquecer toda a chatice que eu mesmo escrevi acima. Abraço a todos. Desejo feliz Ano-Novo até a quem não conheço. A quem gosto e a quem não gosto. E a quem não gosto nem desgosto. E, a cada gole de álcool, pareço mais perto das pessoas ao meu redor. E muito, muito mais longe do que Deus e eu esperamos desta espécie, que surpreendentemente sobrevive mesmo perseguindo com todas as suas forças a extinção.

5 comentários:

  1. Compartilho de sua avaliação, caro Max. Bela crônica a sua. Nós gostaríamos todos de fazer do ano-novo algo efetivamente novo - algo talvez fora de nosso alcance. Mas, o que está ao alcance de todos fazer? Também me valho de uma crônica de ocasião, escrita no derradeiro dia de 2008. Ainda vale o espírito da coisa. http://edu74.wordpress.com/2008/12/31/2009/
    Abração!

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  2. Só 19 aninhos! Hahahah
    Bela crônica. Vai pro site do PSOL, ok? Aliás, você tem escrito cada dia melhor.
    Beijos!
    Carol

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  3. max: adorei a crônica. quanto aos rituais, talvez fosse o caso de nos reapropriarmos deles em prol do mundo que queremos. há muito o que lamentar, mas muito também a celebrar - estarmos aqui, neste momento, eu escrevendo e você - eventualmente - lendo, isso é animal, não podemos deixar de lembrar que é por momentos assim, mais, melhores e pra todos, que lutamos. 2009 passou, façamos de 2010 um ano mais próximo da sociedade que queremos. abraços!

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  4. Grande Max, mais um belo texto seu que tenho oportunidade de ler.


    Vivemos sob o signo da crise, um mal estar civilizacional.

    Graças a capacidade do capitalismo em transformar tudo em supérfluo, tudo é banalizado e descartavel, pois assim a sociedade de consumo pode continuar avançar e mercantilizar a vida de homens e mulheres e acabar mais rapidamente com o planeta.

    Porém as contradições desse modelo são imensas e há espaço para transformações estruturantes, infelizmente há vacilações e a utopia transformadora é deixada de lado em nome de um pragmatismo covarde, e assim perdemos oportunidades, a crise econômica atual é um grande exemplo, as forças progressistas avançaram pouco, há excessões é claro, talvez somente nossa América Latina. Mesmo com tudo isso não podemos perder a utopia, como bem diz o Eduardo Galeano ela serve pra que não deixemos de caminhar.

    Um abraço, bom 2010, com grandes conquistas.

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  5. Fernanda (Enfermagem)13 de março de 2011 às 11:52

    Não tinha conhecimento deste blog e desse ser escritor que vc é... Aliás, até ontem nem o conhecia direito...
    Ótima crônica!
    Me trouxe grandes reflexões. Já que este era o propósito, sinto que conseguiu alcançar seu objetivo.

    Compartilho, principalmente, da sua "dúvida perigosa", de que não seja tão semelhante aos seus semelhantes... Dependendo do contexto, essa duvida pode nem ser tão perigosa assim... No sentido de que possa ser bom que não seja semelhante a pessoas que divergem daquilo em que acredita. Seja família ou não.

    Hoje, talvez, vc já tenha algumas respostas pra muitas questões que surgem dessa crônica, já que a escreveu há tanto tempo. E que pra mim, são questões que nasceram há pouco. Engraçado como a vida é... Bonito!

    Gostei bastante desse seu espaço, e tenha certeza de que voltarei a revê-lo.

    Abraços

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