sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A novela das nove termina, mas e a novela do beijo gay na novela?

Em certos meios, não se pode falar de telenovela sem colocar em risco a reputação. Neles, acredita-se que é possível combater a qualidade muitas vezes bastante duvidosa dessas produções ignorando-se solenemente sua existência.

Trata-se de evidente equívoco, tendo-se em vista que a telenovela do “horário nobre” continua sendo o carro-chefe da programação da maior emissora de TV do país, cujo sinal hoje já cobre a quase totalidade do território nacional. Com esse alcance, a telenovela das 21h da Rede Globo é hoje muito provavelmente um dos principais “bens culturais” fruídos pelos brasileiros, aqueles destinados à satisfação da fome do espírito. E isso tem repercussões na hegemonia dos valores vigentes, bem como consequências na formação do imaginário das gerações que crescem assistindo a ela. Trata-se, pois, de fenômeno digno de alguma atenção.

E atentos a isso existem muitos pesquisadores, e não é difícil encontrar em bancos científicos artigos que abordem o tema. Aqui, no entanto, interessa outra coisa: refletir breve e livremente sobre a polêmica do beijo gay, que pode ir ao ar logo mais no capítulo de encerramento de “Amor à vida”.


A primeira coisa interessante a notar é como o casal gay ganhou centralidade na trama, no lugar da mocinha loira e bonitona e do mocinho fortão. Desgastado, esse estereótipo não conseguiu cativar, e um defeito das telenovelas (sua abertura às “coerções do momento”, que remonta à literatura de folhetim do passado) ajudou a salvar sua audiência: ao perceber que o conflito central não estava vingando, o autor (provavelmente baseado em acuradíssimas pesquisas de opinião da emissora e pressionado pela necessidade de resultados) rastreou onde estavam os possíveis substitutos. E então encontrou Félix, que acabou sofrendo uma vertiginosa mudança de orientação, passando de vilão sem coração a herói apaixonado – o qual, de quebra, ainda terminou arrebatando para si a verdadeira “mocinha” (pela ingenuidade etc.) da história, o personagem Niko. Ainda estamos no registro dos estereótipos, é verdade, mas de algum modo renovados.

O artista, seja ele um autor de romance ou de telenovela, deveria estar empenhado em apresentar para a sociedade em que vive uma configuração do que acredita serem as grandes verdades de seu tempo. Se bem sucedido, pode contribuir com a autoconsciência de uma sociedade a respeito de sua própria história. Para tanto, ele não pode ter como preocupação central agradar – seja uma “causa”, um superior ou o todo-poderoso “mercado”. Como diz o ditado, não é possível servir a dois senhores ao mesmo tempo – e, na criação artística, a escolha de uma preocupação trai as exigências da outra, invariavelmente.

Engana-se, porém, quem vê nas “coerções do momento” apenas a vontade do público calcada no senso-comum. E aqui as telenovelas se distanciam dos folhetins. Enquanto estes estavam de fato diretamente vinculados a seus leitores, que com assinaturas mantinham os jornais que publicavam as histórias, atualmente não é preciso pagar para viabilizar as novelas – são os anunciantes que o fazem, para terem nos intervalos (e às vezes também dentro delas) a propaganda de suas mercadorias. Estabelece-se então uma dupla exigência (que desloca a importância do público de fim para meio): levar ao ar uma trama que consiga, ao mesmo tempo, despertar a atenção do telespectador, sem no entanto despertar nele nada além disso, para não colocar em risco a estabilidade da ordem social e portanto os lucros das grandes empresas que financiam essas produções (grande exemplo é o caso do merchandising do Big Brother Brasil na novela, ao melhor estilo “falem mal mas falem de mim”, mostrando que o importante não é ser bem ou mal visto, mas simplesmente visto, para que os índices de audiência justifiquem o investimento do anunciante).

Nesse sentido, lança-se mão dos mais variados recursos de exagero, que rendem aos roteiros das telenovelas avaliações pouco elogiosas da crítica, como a de promover muitas vezes “dramalhão” e “humor pastelão”. Há também a megalomania em querer passar por todos os temas polêmicos (e com isso chamar atenção), sem tratar seriamente nenhum deles e ainda, ao final da novela, deixar a sensação conformista de que, no fim das contas, tudo (não importa o que) se resolverá. E isso para não tocarmos nas conseqüências danosas à verossimilhança das tramas que causam as já apontadas mudanças drásticas nos personagens. Se é interessante que haja o deslocamento da contradição bem X mal para dentro deles (garantindo-lhes, com isso, complexidade e densidade psicológicas, em vez do maniqueísmo pueril da “gente de bem” contra o mal), a falta de comprometimento com a coerência do enredo e dos personagens tornam tudo ainda mais “líquido”, dificultando o estabelecimento já difícil de elos e de afetividade em nossa contemporaneidade – o “outro”, volúvel e imprevisível, passa a ser visto com reservas, como ameaçador.

As telenovelas da Rede Globo são, como sabemos, produtos da chamada indústria cultural. Ou seja, servindo não como arte que problematiza a realidade, mas como mercadoria que nos entretém enquanto as consumimos (deixando os problemas por se resolver na realidade, sem que ninguém tenha tempo para eles), a preocupação central da novela é agradar – no caso, aos anunciantes que pagam pelo comercial e à emissora que recebe esse dinheiro. Não deve, pois, ser vista como “vanguarda”, ainda que leve hoje à tela o tão aguardado beijo gay (ela não faria isso se a correlação de forças entre valores de respeito e de preconceito, na prática, fosse outra). Também não se deve comparar o beijo gay ao lésbico, mais “palatável” a uma sociedade machista que acha até bacana “duas mulheres se pegando” (esta última modalidade de beijo já foi ao ar em novela recente do SBT).

A exibição de um beijo gay na novela de hoje pode e deve ser comemorada, mas não como uma nova conquista, e sim como um reconhecimento tardio de conquistas de toda uma comunidade que luta há anos, entre outras coisas, por seu mais elementar direito de amar e de ter suas manifestações de afeto socialmente reconhecidas. É talvez um animador sinal dos tempos, no sentido de uma melhora nos valores do senso-comum. Mas há ainda longo caminho a percorrer – afinal, a demonstração de afeto de um beijo gay ainda é mais polêmica do que a demonstração de ódio e violência, implicada por exemplo na cena das dez facadas da vilã da novela em seu ex-amante indefeso, amarrado a uma cama.

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