Em certos meios, não se pode falar de telenovela sem
colocar em risco a reputação. Neles, acredita-se que é possível combater a
qualidade muitas vezes bastante duvidosa dessas produções ignorando-se
solenemente sua existência.
Trata-se de evidente equívoco, tendo-se em vista que
a telenovela do “horário nobre” continua sendo o carro-chefe da programação da maior
emissora de TV do país, cujo sinal hoje já cobre a quase totalidade do
território nacional. Com esse alcance, a telenovela das 21h da Rede Globo é hoje
muito provavelmente um dos principais “bens culturais” fruídos pelos
brasileiros, aqueles destinados à satisfação da fome do espírito. E isso tem repercussões
na hegemonia dos valores vigentes, bem como consequências na formação do
imaginário das gerações que crescem assistindo a ela. Trata-se, pois, de fenômeno
digno de alguma atenção.
E atentos a isso existem muitos pesquisadores, e não
é difícil encontrar em bancos científicos artigos que abordem o tema. Aqui, no
entanto, interessa outra coisa: refletir breve e livremente sobre a polêmica do
beijo gay, que pode ir ao ar logo mais no capítulo de encerramento de “Amor à
vida”.
A primeira coisa interessante a notar é como o casal
gay ganhou centralidade na trama, no lugar da mocinha loira e bonitona e do mocinho
fortão. Desgastado, esse estereótipo não conseguiu cativar, e um defeito das
telenovelas (sua abertura às “coerções do momento”, que remonta à literatura de
folhetim do passado) ajudou a salvar sua audiência: ao perceber que o conflito
central não estava vingando, o autor (provavelmente baseado em acuradíssimas pesquisas
de opinião da emissora e pressionado pela necessidade de resultados) rastreou
onde estavam os possíveis substitutos. E então encontrou Félix, que acabou sofrendo
uma vertiginosa mudança de orientação, passando de vilão sem coração a herói apaixonado
– o qual, de quebra, ainda terminou arrebatando para si a verdadeira “mocinha”
(pela ingenuidade etc.) da história, o personagem Niko. Ainda estamos no registro
dos estereótipos, é verdade, mas de algum modo renovados.
O artista, seja ele um autor de romance ou de
telenovela, deveria estar empenhado em apresentar para a sociedade em que vive
uma configuração do que acredita serem as grandes verdades de seu tempo. Se bem
sucedido, pode contribuir com a autoconsciência de uma sociedade a respeito de
sua própria história. Para tanto, ele não pode ter como preocupação central agradar
– seja uma “causa”, um superior ou o todo-poderoso “mercado”. Como diz o
ditado, não é possível servir a dois senhores ao mesmo tempo – e, na criação
artística, a escolha de uma preocupação trai as exigências da outra,
invariavelmente.
Engana-se, porém, quem vê nas “coerções do momento” apenas
a vontade do público calcada no senso-comum. E aqui as telenovelas se
distanciam dos folhetins. Enquanto estes estavam de fato diretamente vinculados
a seus leitores, que com assinaturas mantinham os jornais que publicavam as
histórias, atualmente não é preciso pagar para viabilizar as novelas – são os
anunciantes que o fazem, para terem nos intervalos (e às vezes também dentro
delas) a propaganda de suas mercadorias. Estabelece-se então uma dupla exigência
(que desloca a importância do público de fim para meio): levar ao ar uma trama
que consiga, ao mesmo tempo, despertar a atenção do telespectador, sem no entanto
despertar nele nada além disso, para não colocar em risco a estabilidade da ordem
social e portanto os lucros das grandes empresas que financiam essas produções
(grande exemplo é o caso do merchandising do Big Brother Brasil na novela, ao
melhor estilo “falem mal mas falem de mim”, mostrando que o importante não é
ser bem ou mal visto, mas simplesmente visto, para que os índices de audiência
justifiquem o investimento do anunciante).
Nesse sentido, lança-se mão dos mais variados recursos
de exagero, que rendem aos roteiros das telenovelas avaliações pouco elogiosas
da crítica, como a de promover muitas vezes “dramalhão” e “humor pastelão”. Há
também a megalomania em querer passar por todos os temas polêmicos (e com isso chamar
atenção), sem tratar seriamente nenhum deles e ainda, ao final da novela, deixar
a sensação conformista de que, no fim das contas, tudo (não importa o que) se resolverá. E isso
para não tocarmos nas conseqüências danosas à verossimilhança das tramas que
causam as já apontadas mudanças drásticas nos personagens. Se é interessante
que haja o deslocamento da contradição bem X mal para dentro deles
(garantindo-lhes, com isso, complexidade e densidade psicológicas, em vez do
maniqueísmo pueril da “gente de bem” contra o mal), a falta de comprometimento
com a coerência do enredo e dos personagens tornam tudo ainda mais “líquido”,
dificultando o estabelecimento já difícil de elos e de afetividade em nossa
contemporaneidade – o “outro”, volúvel e imprevisível, passa a ser visto com reservas, como
ameaçador.
As telenovelas da Rede Globo são, como sabemos, produtos
da chamada indústria cultural. Ou seja, servindo não como arte que problematiza
a realidade, mas como mercadoria que nos entretém enquanto as consumimos
(deixando os problemas por se resolver na realidade, sem que ninguém tenha tempo
para eles), a preocupação central da novela é agradar – no caso, aos
anunciantes que pagam pelo comercial e à emissora que recebe esse dinheiro. Não
deve, pois, ser vista como “vanguarda”, ainda que leve hoje à tela o tão
aguardado beijo gay (ela não faria isso se a correlação de forças entre valores de respeito e de preconceito, na prática, fosse outra). Também não se deve comparar o beijo gay ao lésbico, mais “palatável”
a uma sociedade machista que acha até bacana “duas mulheres se pegando” (esta
última modalidade de beijo já foi ao ar em novela recente do SBT).
A exibição de um beijo gay na novela de hoje pode e
deve ser comemorada, mas não como uma nova conquista, e sim como um reconhecimento
tardio de conquistas de toda uma comunidade que luta há anos, entre outras
coisas, por seu mais elementar direito de amar e de ter suas manifestações de afeto
socialmente reconhecidas. É talvez um animador sinal dos tempos, no sentido de
uma melhora nos valores do senso-comum. Mas há ainda longo caminho a percorrer – afinal, a demonstração de afeto de um beijo gay ainda é mais polêmica do que a demonstração de ódio e violência, implicada por exemplo na cena das dez facadas da vilã da novela em seu ex-amante indefeso, amarrado a uma cama.