terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Paulo César Pinheiro, o bruxo

Paulo César Pinheiro é homem bom com as palavras, artista de dar gosto. Compositor, poeta e boêmio, ele agora também pode ser chamado, com todas as letras, de romancista. E dos bons. Depois de "Pontal do Pilar", ótimo romance de estreia publicado em fins de 2009, chega agora em 2011 às livrarias "Matinta, o bruxo", em cujo processo editorial eu orgulhosamente estou trabalhando. Por conta disso, acabei conhecendo as duas músicas que, cruzadas, dão as bases para o enredo da história, "Sagarana" e "Matita-Perê". Preciosas. Abaixo reproduzo uma versão bonitinha de "Sagarana" que encontrei no Youtube. Lá tem também com a Clara Nunes, para quem preferir. Deliciem-se. Porque, muito sinceramente, essa música é a coisa mais linda.


Mea-culpa necessário

Lá no sítio do Pica-Pau Amarelo dizem que a coisa era assim: a Narizinho tinha o narizinho fino. O personagem mais inteligente, Visconde de Sabugosa, era ruivo como em terras arianas e distantes além-mar. E a serviçal agregada da casa, Tia Nastácia, era uma senhora negra.

Poderíamos inferir com isso, e talvez até com alguma razão, que Monteiro Lobato tinha um pé no racismo. Recentemente, por exemplo, a obra “Caçadas de Pedrinho” foi acusada, pelo Conselho Nacional de Educação, de conter trechos racistas.

Debate semelhante ocorre nos EUA, onde o livro “Hucleberry Finn”, de Mark Twain, vem há anos sofrendo o mesmo tipo de acusação. A saída encontrada pela editora NewSouth Books, que lançará nova edição da obra em breve, no entanto, é assustadoramente perigosa: a versão vai trazer as expressões tidas como problemáticas deliberadamente adulteradas, com a intenção de adequar o livro ao “politicamente correto”.

Essa “sanitarização”, como denomeou Ivan Finotti em matéria recente na “Folha de S.Paulo”, traz uma série de questões em seu bojo e expõe a fragilidade da história na mão de quem a conta. Em outras palavras, carimba o certificado de validade da tese de que não existem verdades absolutas em termos de historiografia.

E tudo isso traz à tona também o compreensível descompasso entre obras literárias antigas e o corrente “politicamente correto”. É uma enorme estupidez lidar com autores antigos cobrando deles a mentalidade que temos nós, muitos anos depois. Por mais visionários que fossem, temos de lembrar que estavam presos a seu tempo, por assim dizer, à estrutura social até então produzida e por todos compartilhada, com as suas devidas nuanças. A literatura expressa temas com significação universal que transcendem o tempo, é verdade, mas o faz à luz da sociedade da época em que é produzida.

E, vejam, digo tudo isso sem absolutamente duvidar da boa-fé de muitos que estão por trás dessas iniciativas. E aqui conto o porquê, justificando o título desta postagem.

Trabalho em editoras de livros há aproximadamente quatro anos e já deparei com uma situação parecida. E cometi um crime, que à época assim não considerava e pelo qual agora me resta, com este texto, tentar alguma redenção. Foi em um trabalho como preparador de textos, à época para a editora Planeta. O livro era um romance estrangeiro de autoajuda fraquinho e trazia uma passagem completamente periférica que me tirou o sono enquanto adolescente militante de esquerda. Não tive dúvidas, substituí “terrorista” por “guerrilheiro” e “maldade” por “violência” – se não me engano. Grande erro.

É preciso ter em mente o que significa esse tipo de interferência. Muito mais proveitoso do que vetar uma obra literária ou adulterá-la seria termos edições bem-trabalhadas, com notas de rodapé que situem a obra em seu contexto. E também termos professores bem-preparados em salas de aula para trabalhar o conteúdo suscitado por tais leituras. No caso de autores vivos, como era o caso do meu trabalho, o adequado é tentar dissuadi-los do emprego de certas palavras e vieses. Caso isso não funcione, fazer o quê, os autores assinam e respondem por suas obras, podendo ser julgados pela crítica, pelo público e pela história. À editora e aos profissionais envolvidos no processo editorial, cabe a decisão da publicação e os procedimentos para concretizá-la.

Interferências desse tipo demonstram imaturidade e são extremamente perigosas, uma vez que agem no sentido de deliberadamente alterar o passado, mudar a história, algo até orwelliano, se formos parar para pensar no trabalho do pobre Winston Smith no Ministério da Verdade, no livro “1984”. Com isso, perde-se a exata noção do processo de desenvolvimento histórico e de construção social da moral vigente. Perde-se o exato significado das transformações sociais e dos desafios dos que lutaram para empreendê-las.

Um autor que comete equívocos, ou é preconceituoso, ou reproduz senso-comum etc., deve sim ser alertado antes e depois da publicação por editores, amigos, revisores ou quem quer que seja que possa fazê-lo. Uma vez publicada, no entanto, a obra materializa-se enquanto expressão artística portadora de elementos de seu autor e sua época. Mudanças podem ser feitas a posteriori, sem dúvidas, mas por iniciativa (ou ao menos com o consentimento) do autor e a consciência por parte deste de que, por mais que queira dar nova forma ao seu produto artístico, a forma antiga já não pertence apenas a ele, mas também à história.