sexta-feira, 13 de março de 2009

Em tempos dramáticos, a validade do apelo melodramático



Baseado no livro homônimo de Bernhard Schlink, o filme O leitor tem em seu elenco a ganhadora do Oscar de melhor atriz de 2009, Kate Winslet, que interpreta uma humilde cobradora de bonde que acaba por envolver-se sexualmente com um jovem (Michael, interpretado por David Kross) cerca de 20 anos mais novo. A mistura de literatura e sexo torna o caso dos dois curioso, mais próximo da inocência que do vulgar. Até que Hanna, a cobradora, some de maneira enigmática.

O longa se passa na Alemanha dos anos 1950, após a derrocada nazista. E o nazismo não passa incólume. Após o sumiço de Hanna e o longo tempo que ela e Michael passam longe um do outro, os dois se encontram em um julgamento de crimes cometidos por nazistas. Ele como estudante de direito, ela como ré. A temática do nazismo parece esgotada, mas com O leitor percebemos que sempre há espaço para uma abordagem nova, diferente.

O inusitado é a superação da forma geralmente maniqueísta ou simplista por meio da qual o tema é tratado. Aqueles que julgam ser conhecedores da verdade absoluta e inquestionável terão motivos para entrar em crise com suas certezas. Um colega de curso de Michael considera criminosos todos que deixaram de se levantar de alguma forma contra as barbaridades empreendidas pelos nazistas. A tese parece válida... mas será mesmo?

O filme levanta uma série de questões interessantes para reflexão e uma delas é justamente deixar de lado preconceitos e buscar entender as motivações que levaram uma parcela da sociedade dos países dominados pelo nazi-fascismo a apoiá-lo, ainda que tacitamente. A sugestão de que o mundo, no período da Segunda Guerra, não se dividia entre pessoas boas, de um lado, e nazistas, de outro, soa algo óbvia.

Hanna é levada a julgamento e abdica de se defender, curiosamente, o que constitui o mistério a ser revelado pelo espectador. Suspense este intimamente ligado ao porquê de ela ter de certo modo participado do regime do Füher. Já repararam como a ignorância ajuda e eleger e a manter regimes e políticos da pior espécie no poder? Às vezes parece acaso; às vezes, não. E não se trata de absolver os crimes cometidos, mas de buscar compreendê-los.

A leitura, como mostra o filme, tem poder: liberta mentes, derruba barreiras, amplia horizontes e, assim, possibilita a construção do novo – como uma sociedade de homens e mulheres livres, por exemplo. Livres não por serem definidos assim no papel, numa lei ou algo do gênero. Livres por terem sido emancipados, por poderem pensar com suas próprias cabeças. Livres da manipulação do poder, seja ele político ou econômico. O acesso ao saber, nota-se, é o melhor que se pode fazer contra as tiranias e todo o mal que delas advém.

Alguns podem classificar O leitor como melodramático, e talvez o seja mesmo, mas esse ainda parece ser um valioso instrumento para abrir olhos, tocar corações e inquietar mentes em tempos de crise econômica e descrença política. Indicado para quem busca mais que entretenimento, para quem busca uma boa reflexão – e, sobretudo, forças para lutar por dias melhores.


(Texto publicado na edição de fevereiro de O Diplomático)

sexta-feira, 6 de março de 2009

Por que Hugo Chávez ganhou?

(Por Emir Sader, sociólogo e professor da UERJ. Texto publicado originalmente na Agência Carta Maior. Muito bom. Pensei em escrever a respeito, mas como ando meio sem tempo por causa de outros projetos e como alguém já fez uma defesa bastante digna, tomei a liberdade de simplesmente reproduzir aqui um bom artigo, de um intelectual que sabe o que está falando... é necessário porque o que se escreve de besteiras sobre a Venezuela não é brincadeira...)

Uma vez mais, em dez anos, Hugo Chavez triunfou nas eleições internas. À exceção da consulta de reforma constitucional de dezembro de 2007, ele triunfou em todas as 14 eleições, presidenciais, de referendos do mandato presidencial e outras. Volta agora a triunfar.

A levar a sério as versões da grande maioria – a quase totalidade da mídia privada nacional e internacional – não se pode entender suas vitórias. Que aos 10 anos de mandato, sob efeito de uma brutal oposição da mídia monopolista privada, das entidades do grande empresariado, dos partidos tradicionais, entre outras entidades que fazem parte do bloco de direita, Hugo Chavez detenha um apoio popular majoritário, só poderia ser atribuído a algum tipo de fraude. No entanto a própria oposição reconheceu a normalidade das eleições e a vitória de Chavez.

A razão de fundo para o apoio de Chavez na massa majoritariamente pobre da população venezuelana é a mesma que explica o êxito de governantes que privilegiam políticas sociais em detrimento da ditadura da economia e do mercado, característica dos governos que os precederam. Num país petroleiro, é incrível a pobreza venezuelana, revelando como as elites desse país fizeram a farra do petróleo, enriquecendo-se elas e distribuindo parte da renda petroleira a outros setores, políticos e sociais – incluindo a antiga "esquerda" e grandes setores do movimento sindical – que participavam da corrupção estatal.

Essas mesmas elites não perdoam que Hugo Chavez lhes tenha arrebatado não apenas o governo e o Estado, mas a principal fonte de riquezas do país – a PDVSA. E que dedique cerca de um quarto dos recursos obtidos por essa empresa para políticas sociais – para resgatar direitos essenciais da massa pobre da população, vitima principal do enriquecimento das elites tradicionais. Além de se valer de parte desses recursos para políticas internacionais solidárias – inclusive com setores pobres dos EUA.

Os resultados são claros: a extrema pobreza foi reduzida de 17,1 a 7,9. Cresceu a taxa de escolaridade e de preescolaridade, que subiu de 40 a 60%. Terminou o analfabetismo, segundo a constatação da Unesco. A participação feminina subiu muito no Parlamento e quatro mulheres dirigem a Corte Suprema, a Procuradoria Geral, o Conselho Nacional Eleitoral e a Assembléia Nacional. A taxa de mortalidade infantil diminuiu de 27 por mil a praticamente a metade: 14 por mil. O acesso a água potável subiu de 80 a 92% da população. Diminuiu significativamente a desigualdade social, a Venezuela subiu bastante no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, aumentou a expectativa de vida, diminuiu o desemprego, aumentou o trabalho formal em relação ao precário, foram legalizados milhões de aposentados, o consumo de alimentos subiu 170%. Em suma, como em todos os governos que buscam reverter a herança neoliberal, se dá um imenso processo de afirmação dos direitos da grande maioria, refletido na sua promoção social e na expansão do mercado interno de consumo popular.

A ideologia bolivariana articula promoção dos direitos à soberania nacional, à solidariedade internacional e à construção de um tipo de sociedade fundada nas necessidades da população e não nos mecanismos de mercado – a que Chavez aponta como o socialismo do século XXI.

A nova vitória de Chávez tem nessas bases seu fundamento. À falência das corruptas elites tradicionais, a Venezuela passou a viver o maior processo de democratização social e política da sua história. Essa vitória permite e compromete o governo com o enfrentamento da grande quantidade de problemas pendentes e que responde, em parte pela derrota anterior do governo, em dezembro de 2007.

Entre eles, a adaptação do Estado às necessidades de gestão eficiente e transparente de suas políticas, o enfrentamento do tema da violência, o avanço na construção de estruturas de poder político popular de base e do partido, o desenvolvimento de políticas econômicas que permitam a edificação de estruturas econômicas menos dependentes do petróleo, de caráter industrial e tecnologicamente avançadas.

As derrotadas são as elites tradicionais, que controlam 80% da mídia privada do país, que promoveram o golpe militar contra Chavez, um lock-out e a fuga de capitais contra o país, que se articulam com o governo dos EUA contra as autoridades legitimamente eleitas e reconfirmadas pelo voto democrático do povo venezuelano. Chavez sai fortalecido da consulta, assim como a imensa massa pobre da população, que ingressa, através do processo bolivariano à historia política do país.