terça-feira, 25 de agosto de 2009

II Congresso Nacional do PSOL: novos tempos para um pequeno grande partido

Reproduzo abaixo a minha contribuição ao debate sobre os rumos do PSOL, ecrito antes da realização do congresso, ocorrido no último fim de semana. Os resultados ainda precisam ser digeridos. Mas uma lição ficou: se a esquerda pretende mudar o país ou o mundo, em primeiro lugar precisa mudar algumas de suas próprias práticas. Não se constrói sociedade igualitária com complexo de superioridade nem muito menos com personalismo.




PSOL: entre a disputa política moralista e a programática

O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) acaba de passar por um processo de congressos estaduais e chega agora ao seu II Congresso Nacional, a ser realizado na cidade de São Paulo nos dia 21, 22 e 23 de agosto. O que se pôde observar como divergência interna relevante até o momento foi uma diferença de análise da conjuntura e, consequentemente, das prioridades táticas e da estratégia do partido para intervir nas lutas cotidianas da população e nas eleições de 2010.

Há, por parte daqueles que defendem a preponderância da luta contra a corrupção, uma tendência a negar que exista essa polarização, colocando formalmente como eixo central a luta contra a crise econômica, mas agindo, na prática, de modo diferente. Alegam que a corrupção seria o elo frágil da cadeia, é um tema que “pega” junto ao povo, sendo capaz de ser ele o canal entre a insatisfação popular e o PSOL. Pode ser um dos canais, sem dúvida, mas há que se ter clareza sobre alguns aspectos, a começar pela ciência de que o socialismo não é uma condecoração de distinção moral ou uma criação metafísica a congregar os seres iluminados e de alguma forma superiores em seu entorno. Definitivamente, não.

É preciso entender também que o tema “pega” facilmente porque faz parte de um senso comum forjado em uma década de hegemonia neoliberal, em que o chamado “pensamento único” se impôs com força e que a única diferenciação política aparentemente possível, já que se proclamava o fim das ideologias, seria por meio da bandeira da ética na política. Bandeira esta que tem sido utilizada diligentemente pela mídia desde então para colocar todos no mesmo saco e semear o ceticismo em relação à participação político-partidária.

O Partido dos Trabalhadores (PT) assistiu ainda jovem à queda do Muro de Berlim e ao desnorteamento político que provocou o colapso do chamado “socialismo real”. O partido não resistiu à pressão e abandonou a disputa por um projeto alternativo para em seu lugar disputar a gerência do projeto dado. Passou, aos poucos, a abandonar seu plano estratégico, que atingiu a melhor formulação com o programa democrático-popular, para contentar-se com a disputa moral. Afinal, muitos foram convencidos de que o pensamento único era de fato único e que caberia aos petistas a luta pela gerência do sistema, a fim de torná-lo mais humano, o que é estruturalmente inviável.

A corrupção, entendida como apropriação de bens públicos ou de uma coletividade para uso privado ou corporativo, é inerente ao sistema capitalista, pois este tem como fundamento a busca pelo lucro. Como não há capitalismo sem lucro, e este é em última instância uma forma de corrupção aceita legalmente, não é possível criticá-la isoladamente. A corrupção é estrutural não só no Estado brasileiro mas em todo Estado capitalista. A luta contra a corrupção é tática para a denúncia do sistema vigente e gancho para proposições programáticas, que devem ser o eixo, ainda mais em um momento de crise. Um paralelo pode ser feito com a questão ambiental, que, caso não esteja vinculada à crítica ao capitalismo predatório, tende a ser uma pauta vazia ou possível de ser cooptada e ainda acabar servindo como marketing para as corporações.

A crise econômica que atravessamos, a maior desde a de 1929, é profunda e já ultrapassou os muros do cassino financeiro e chegou à economia real, causando desemprego e forçando o governo a reduzir verbas de políticas sociais para drená-las ao grande capital. É a socialização dos prejuízos em tempos de crise que se segue à privatização dos lucros em tempos de bonança. É certo que ela abre perspectivas de questionamento do regime vigente, mas é um engano crer que a crise é positiva para a esquerda e os socialistas. Não o é necessariamente, pois as mesmas chances que abre à radicalização da esquerda o faz também à direita. E, tendo em vista o atual despreparo e fragmentação da esquerda, é possível dizer que vivemos tempos perigosos. A ofensiva conservadora em defesa do capital está mais presente agora do que em tempos de estabilidade, embora cada vez mais sofisticada.

As oportunidades criadas tendem a ser aproveitadas pelos próprios defensores do capital, com o uso emprestado do ideário keynesiano, de modo provisório. É preciso entender esse tipo de intervenção como cooptação de uma doutrina econômica esgotada, como a outra face de uma mesma moeda neoliberal. Ela faz parte do ciclo dialético por meio do qual a economia capitalista se recicla. O keynesianismo como alternativa morreu, e os economistas que o defendem não são senão massa de manobra nas mãos daqueles que sairão da moita tão logo o Estado apague o incêndio provocado pela ganância capitalista – no caso, os neoliberais, ou qualquer outro nome que se venha a dar aos partidários da supremacia do mercado e da liberdade do capital.

É preciso travar a disputa programática e para este programa de ruptura disputar a consciência do povo, como um partido de massas e não vanguardista, ultrapassando a barreira do simples propagandismo e da denúncia ética para se tornar alternativa real de governo e assim avançar em uma disputa propositiva. O único formato existente hoje para a construção efetiva e conseqüente do socialismo é o de democracia popular, observadas as peculiaridades de cada tempo e de cada povo, que lute pelo fortalecimento do Estado, pela organização e mobilização popular e pela abertura e democratização das instituições, o que vem logrando êxito em países da América Latina, a exemplo de Venezuela, Bolívia e Equador.

Um partido que se proponha a ir além do que foi a experiência do PT não pode cometer os mesmo erros, ainda mais em conjuntura diferente e tão mais promissora. Para isso, é preciso fazer uma leitura correta e entender que o erro petista não foi a defesa de um programa democrático-popular para, com a combinação da disputa institucional e da mobilização popular, revolucionar o Brasil e construir o socialismo. Foi justamente o abandono deste e a capitulação à disputa política moralista. O PT no governo nos marcos da gestão burguesa do Estado é a prova de que, por mais boa vontade que porventura se possa ter, a voracidade do capital não perdoa. Ela arrasta uns e atropela outros, mas não deixa de executar seus objetivos.

Texto originalmente publicado no Correio da Cidadania, em 19 de agosto de 2009.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Dívida pública faz a farra dos especuladores

Minha estreia na Caros Amigos... divido com vocês a alegria e também um trechinho da entrevista. Não vou reproduzir a íntegra pois a revista está nas bancas e eu espero que todos comprem, até porque tem muitas outras matérias legais, como a entrevista com a Marina Silva (a respeito da ofensiva do agronegócio sobre a Amazônia) e a com o Luiz Mott (sobre os assassinatos de homossexuais no Brasil). Sem contar os colunistas de sempre, em sua maioria lutadores comprometidos com a construção de um país mais justo, igualitário e fraterno. Uma publicação sem o rabo preso com ninguém -- ou talvez com ele preso apenas à consciência social, que não deixa nenhum dos colaboradores esquecer que ainda hoje, portanto século XXI, existem seres humanos passando fome ou trabalhando de modo análogo à escravidão. Isso é natural? Nós achamos que não. Isso é normal? Temos a certeza de que, ao menos, não deveria ser...



A Auditoria Cidadã mostra como funcionam os mecanismos que colocaram o Brasil e outros países da América Latina reféns do capital financeiro

Por Max Gimenes

Em entrevista exclusiva, a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, conta como foi sua participação, a convite do presidente Rafael Correa, na comissão oficial de auditoria da dívida do Equador, em 2008. Presidentes de outros países, como Bolívia, Venezuela e Paraguai, demonstram a intenção de seguir o exemplo equatoriano. Para Maria Lucia, é preciso que o Brasil cumpra a Constituição Federal, que prevê a auditoria, para que a sociedade pare de pagar a conta à custa da privação de direitos sociais elementares, conta esta que a atual crise tende a tornar ainda mais cara.

Max Gimenes - Como se sentiu ao participar da auditoria da dívida do Equador, enquanto o Brasil continua a pagar, todos os anos, milhões de reais como juros de sua dívida?

Maria Lucia Fattorelli - A realização da auditoria oficial da dívida pública equatoriana foi um dos principais fatos políticos da história da América Latina, pois significa um importante passo no sentido de nossa verdadeira independência e retomada de nossa soberania. Sem dúvida foi uma imensa honra ter sido designada pelo presidente Rafael Correa Delgado para a comissão da Auditoria da Dívida Equatoriana (CAIC), para realizar a auditoria integral de sua dívida pública interna e externa, visando à busca da verdade sobre o endividamento público. Esse trabalho representou um desafio imenso, pois o decreto presidencial determinou a realização de uma auditoria dos últimos 30 anos do processo de endividamento, envolvendo a investigação de aspectos financeiros, contábeis, jurídicos e também seus impactos sociais e ambientais. Considerando que teríamos apenas um ano para realizar essa tarefa, a comissão foi subdividida em subcomissões que se dedicaram especificamente a cada tipo de endividamento: multilateral (dívida externa contratada com FMI, Banco Mundial, Corporación Andina de Fomento e outros organismos multilaterais); bilateral (dívida entre o Equador e outros países ou bancos públicos de outros países); comercial (dívida contratada com bancos privados internacionais) e interna.

O que foi apontado pela auditoria?

O resultado de todas as subcomissões apontou impressionantes ilegalidades e ilegitimidades verificadas em processos que sempre beneficiaram o setor financeiro privado, as grandes corporações e empresas privadas, em detrimento do Estado equatoriano e de seu povo, carente de tantos serviços públicos e de condições de vida digna, apesar das riquezas nacionais, como o petróleo. A sangria provocada pela dívida não permitiu que esses recursos servissem ao povo equatoriano. Uma das constatações mais importantes da comissão foi a incrível semelhança do processo de endividamento equatoriano com o brasileiro e o dos demais países latino-americanos. No caso da dívida externa comercial - com bancos privados internacionais de cuja investigação participei, a dívida atual representada por títulos Bonos Global é resultado do endividamento agressivo iniciado no final da década de 1970, durante a ditadura militar, majorado pela influência da elevação unilateral das taxas de juros pelo Federal Reserve a partir de 1979, por onerosas renegociações ocorridas na década de 1980, quando o Estado equatoriano assumiu inclusive dívidas privadas; seguido de renúncia à prescrição dessa dívida em 1992 e sua transformação em títulos negociáveis, denominados Bonos Brady em 1995, emissões de Eurobonos e nova transformação em Bonos Global em 2000. A dívida externa comercial equatoriana atual é fruto de sucessivas conversões equivocadas de uma mesma dívida que foi crescendo em função da alta de juros internacionais, assunção de dívidas pelo Estado, por seu valor nominal integral, inclusive dívidas privadas, processo que no Equador se denominou “Sucretización”.

Qual a relação com a dívida brasileira?

O endividamento externo comercial do Brasil seguiu passos idênticos, verificando-se a coincidência de datas, nomes dos convênios e dos títulos da dívida, termos e condições estabelecidas nos diversos contratos, além de interferência expressa do FMI; enfim, quando analisava os documentos do endividamento equatoriano parecia que estava lendo os mesmos documentos aos quais já tivemos acesso no Brasil durante os trabalhos da Auditoria Cidadã da Dívida. Diante de tantas semelhanças, o ideal é que os demais países também realizem auditoria de suas dívidas públicas, pois o endividamento tem sido um mecanismo contínuo, utilizado para sugar nossas riquezas e travar o desenvolvimento do nosso continente. Várias iniciativas estão se conformando a partir do primeiro passo dado pelo presidente Rafael Correa: o Paraguai já está realizando uma investigação oficial sobre sua dívida externa, e na última reunião da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América), em novembro de 2008, Venezuela e Bolívia também anunciaram a intenção de fazer a auditoria integral de suas dívidas. O Brasil poderia estar em outro patamar de justiça social e desenvolvimento econômico se a auditoria da dívida prevista na Constituição Federal de 1988 tivesse sido realizada. É uma lástima que nenhum dos governos, nesses vinte anos, tenha respeitado esse preceito fundamental.

O que é e como funciona na prática a auditoria de uma dívida?

Auditoria da dívida, em resumo, significa a investigação de todos os processos de contratação, renegociação, troca e rolagem de dívida pública – interna ou externa. A auditoria se dá com base na análise de documentos oficiais (contratos, títulos e correspondências oficiais, por exemplo) e registros existentes em livros de escrituração contábil, além de dados estatísticos e outras publicações existentes. A auditoria da dívida envolve também a análise de cifras (valores contratados/pagos; comparações entre o valor renegociado e o valor de mercado, comissões diversas, taxas de juros), estudo e análise da legislação de regência e outras questões jurídicas aplicáveis e, adicionalmente, visa à identificação dos participantes nos diversos processos relevantes.

Para ler a entrevista completa e outras reportagens, confira a edição de julho da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou click aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.