sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Meia-noite em Paris (ou a qualquer hora em qualquer lugar)

É claro que quando vamos ao cinema para assistir a um filme de Woody Allen não esperamos outra coisa a não ser um trabalho bem feito -- e isso ainda que você, assim como eu, não entenda lá muito da nossa querida sétima arte.

A propósito, é menos sobre a sétima arte, e mais sobre a sexta delas, a literatura, que pretendo discorrer um pouco neste texto. Num filme em que figuras como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Gertrude Stein aparecem, tal intuito me parece, aliás, bastante compreensível.

O protagonista do longa, Gil Pendler, é um estadunidense que, cansado de se prostituir como roteirista de Hollywood, decide escrever um romance e tentar, dessa maneira, tornar-se escritor. Ele também está em vias de se casar com a bela Inez, com cuja família viaja, em férias, a Paris.

Às voltas com passos decisivos a dar em áreas importantes da vida, como amor e trabalho, Gil deixa-se levar um pouco pelo encanto da Cidade Luz. E isso muda tudo. Sem querer, ele descobre uma "caravana" que passa todos os dias à meia-noite para buscá-lo e levá-lo para a sua "Golden Age" (recorte de tempo e espaço da história da humanidade que idealizamos e no qual gostaríamos de viver -- no caso de Gil, a capital francesa dos anos 1920).

Dividamos agora aqui as considerações em dois momentos: a relação de um escritor com a literatura ocidental e seus cânones e a relação de um leitor qualquer com suas obras preferidas de tal literatura.

A começar pelo primeiro ponto, é necessário reconhecer o que é sem dúvidas uma louvável homenagem ao pensamento de alguém que no filme aparece apenas de passagem, abrindo numa das vezes a porta da "caravana" para Gil: Thomas Stearns Eliot, o T.S. Eliot, poeta e crítico literário britânico nascido nos EUA.

Para Eliot, os escritores vivos e mortos não se encontram propriamente separados numa linha sucessória hierarquizada, mas numa relação de quase "contemporaneidade". Em seu célebre ensaio "Tradição e o talento individual", ele chega mesmo a afirmar que "o passado deve ser alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado", o que é, em alguma medida, o que Woody Allen nos proporciona com sua admirável metáfora.

Quando discute com sua noiva após dias de visitas à "Golden Age", Gil profere palavras das quais Eliot certamente se orgulharia. Gil teria demonstrado possuir o que Eliot chamou de "senso histórico", indispensável a um bom escritor: a "percepção não apenas da qualidade de passado do passado, mas de sua presença". Ou, dito de outra forma, a um escritor é preciso viver "não no que é meramente o presente, mas o momento presente do passado" e estar "consciente não do que está morto [em relação ao passado] mas do que permanece vivo". Nisso o nosso candidato estadunidense a escritor pareceu se sair bem, e não deixa de ser curiosa a situação fantasiosa da entrega de seus manuscritos para leitura e parecer crítico de personalidades do passado, as quais, no entanto, permanecem vivas no universo da literatura e com as quais certamente temos muito a aprender -- ao menos na visão eliotiana.

Avançando agora para o segundo ponto: tudo o que foi dito acima está relacionado ao que Eliot pensava para um escritor. Mas não seria descabido trazer também essa noção de quase "contemporaneidade" para aqueles que são apenas leitores, e não necessariamente escritores. Afinal, é função da literatura educar o homem ao proporcionar a ele um amplo arco de experiências de vida não diretamente vivenciadas.

No caso do filme, Gil convive com críticos, escritores, pintores e demais figuras de relevo que habitaram sua "Golden Age", as quais lhe dão importantes ensinamentos em relação não apenas ao ato de escrever propriamente mas sobretudo no que diz respeito às inquietações mais amplas da vida e à forma de lidar com elas. Assim como sua noiva sai para dançar e se relacionar com alguém com quem julga estar aprendendo alguma coisa, Gil opta por encontros com grandes clássicos da literatura... Ele fazia isso à meia-noite em Paris. Nós, como qualquer um, podemos fazer isso a qualquer hora em qualquer lugar do mundo. Assim é a viagem literária.

"Meia-noite em Paris" pode até ser visto como uma declaração de amor à realmente bela capital francesa. Mas, se eu não estiver muito enganado, ele é também uma declaração de amor, tanto quanto ou até maior, à literatura.

6 comentários:

  1. é max, acho que a letras e a teoria literária já te ganharam! hahahah

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  2. “lhe dão importantes ensinamentos em relação não apenas ao ato de escrever propriamente mas sobretudo no que diz respeito às inquietações mais amplas da vida e à forma de lidar com elas.”

    e não é pra isso, afinal, que existem os escritores? :)

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  3. Max, você descreve de uma forma bonita suas impressões a respeito das coisas. Aliás, tenho que dizer que, além, é claro dos conhecimentos agregados à crítica, você falou a respeito do filme o que eu teria falado – talvez de uma forma menos elegante :).
    É interessante como você geralmente associa assuntos das suas áreas de interesse pra analisar as coisas (e geralmente, diga-se de passagem, consegue analisá-las do ponto de vista literário). Se você pretende receber um tapinha no ombro do Antonio Cândido – ou, quem sabe, figurar um dia ao lado dele no rol dos bons críticos literários –, me parece estar no caminho certo!

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