sábado, 29 de outubro de 2011

A autonomia da USP!*

Por Lincoln Secco, Livre Docente em História Contemporânea na USP

Não é comum ver livros como armas. Enquanto no dia 27 de outubro de 2011 a imprensa mostrou os alunos da FFLCH da USP como um bando de usuários de drogas em defesa de seus privilégios, nós outros assistimos jovens indignados, mochila nas costas e livros empunhados contra policiais atônitos, armados e sem identificação, num claro gesto de indisciplina perante a lei. Vários alunos gritavam: “Isto aqui é um livro!”.

Curioso que a geração das redes sociais virtuais apresente esta capacidade radical de usar novos e velhos meios para recusar a violação de nossos direitos. No momento em que o conhecimento mais é ameaçado, os livros velhos de papel, encadernados, carimbados pela nossa biblioteca são erguidos contra o arbítrio.
Os policiais que passaram o dia todo da ultima quinta feira revistando alunos na biblioteca e nos pátios, poderiam ter observado no prédio de História e Geografia vários cartazes gigantes dependurados. Eram palavras de ordem. Algumas vetustas. Outras “impossíveis”. Muitas indignadas. E várias poéticas... É assim uma universidade.

A violação da nossa autonomia tem sido justificada pela necessidade de segurança e a imagem da FFLCH manchada pela ação deliberada dos seus inimigos. A Unidade que mais atende os alunos da USP, dotada de cursos bem avaliados até pelos duvidosos critérios de produtividade atuais, é uma massa desordenada de concreto com salas superlotadas e realmente inseguras. Mas ainda assim é a nossa Faculdade!

É inaceitável que um espaço dedicado á reflexão, ao trabalho, à política, às artes e também à recreação de seus jovens estudantes seja ameaçado pela força policial. Uma Universidade tem o dever de levar sua análise crítica ao limite porque é a única que pode fazê-lo. Seus equívocos devem ser corrigidos por ela mesma. Se ela é incapaz disso, não é mais uma universidade.

A USP não está fora da cidade e do país que a sustenta. Precisa sim de um plano de segurança próprio como outras instituições têm. Afinal, ninguém ousaria dizer que os congressistas de Brasília têm privilégios por não serem abordados e revistados por Policiais. A USP conta com entidades estudantis, sindicatos e núcleos que estudam a intolerância, a violência e a própria polícia.

Ela deve ter autonomia sim. Quando Florestan Fernandes foi preso em 1964, ele escreveu uma carta ao Coronel que presidia seu inquérito policial militar explicando-lhe que a maior virtude do militar é a disciplina e a do intelectual é o espírito crítico... Que alguns militares ainda não o saibam, é compreensível. Que dirigentes universitários o ignorem, é desesperador.

(*Ótimo texto do ótimo professor Lincoln Secco, para ajudar a entender a polêmica em torno da presença da Polícia Militar dentro do ambiente universitário.)

sábado, 22 de outubro de 2011

Lições de Hogwarts aos estudantes da Universidade de São Paulo


“O mundo não se divide entre pessoas boas e Comensais da Morte”, disse a Harry Potter seu padrinho Sirius Black no quinto filme da série – palavras arrancadas, salvo engano da memória, da boca do professor Remus Lupin no terceiro livro.

Antes que este texto suscite algum tipo de expectativa inapropriada, vale a advertência de que não há aqui pretensão alguma de crítica de cinema nem tampouco de crítica literária sistematizada e aprofundada ou de estudo sociológico metodologicamente rigoroso. O que se pretende é apenas compartilhar considerações soltas acerca da série de livros “Harry Potter” bem como sugerir alguma relação entre os movimentos estudantis bruxo e trouxa. Tudo isso faz parte de um esforço paralelo maior de interpretação e compreensão da obra que, infelizmente, não é possível reproduzir nestas escassas linhas.

“Harry Potter” não é uma narrativa arranjada segundo qualquer tipo de maniqueísmo pueril. Ela é em certo sentido complexa – e, quando digo “complexa”, tenho em mente instrumentos apropriados, nem sempre da maneira mais ortodoxa, da obra do brilhante crítico Antonio Candido. Para ele, a “formação do homem” é função da literatura, não no sentido de “pedagogia oficial”, mas como algo que “age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela – com altos e baixos, luzes e sombras”, o que “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”. Para desempenhar tal função, alguma complexidade é requisito, e acho que neste ponto a autora J.K. Rowling foi de alguma forma bem-sucedida. A leitura de “Harry Potter” a seu modo educa.

A compreensão que sugiro da narrativa é enquanto arranjo dialético tecido a partir das sucessivas contraposições entre as visões de mundo conservadora e progressista (polarização direita X esquerda, se preferirmos), que culminam ciclicamente em duelos entre Harry Potter e Lord Voldemort. Teríamos então, de um lado, uma visão de mundo democrática e igualitária, aberta ao aprimoramento do ser humano e suas relações por meio da razão e da reflexão crítica. E, de outro, uma assustadora visão em torno de valores de disciplina cega e superioridade bruxa em relação às outras criaturas mágicas (outras civilizações) e aos chamados trouxas (idem), bem como à miscigenação envolvendo os primeiros e qualquer um dos dois últimos “outros”.

É a partir do volume “Harry Potter e a Ordem da Fênix” que passamos a notar um maior amadurecimento político na série. Avançando para a questão mais propriamente estudantil, podemos arriscar aqui algumas curiosas analogias com relação à nossa USP: Armada de Dumbledore como reação à intervenção ministerial em Hogwarts (ocupação da Reitoria em 2007 como resposta à violação da autonomia da USP), nomeação de Dolores Umbridge como “alta inquisidora” de Hogwarts e sua missão de conservar o saber teórico descolado da realidade prática (nomeação de João Grandino Rodas como reitor e sua visão igualmente conservadora), brigadas inquisitoriais (“policiais-estudantes” recentemente anunciados como medida de segurança pela reitoria), rejeição à presença de dementadores em Hogwarts (polêmica em relação à entrada da PM na USP) etc.

A instituição máxima responsável por produção e divulgação do “saber” numa sociedade, bruxa ou trouxa, tem grandes responsabilidades como reduto de pensamento crítico (e a passagem do último livro em que Hogwarts se defende das forças das trevas é de arrepiar nesse sentido). Acontece que o nosso mundo também não se divide entre pessoas boas e a direita, por assim dizer, e idealizar o contrário não é senão sinal de imaturidade. Resgatando desta vez o Candido militante: o socialismo para ele, por exemplo, não é forma de pensar, mas sobretudo uma questão ética, de conduta. Ou seja, seriam as escolhas que fazemos (não na retórica mas frente aos dilemas concretos com os quais nos deparamos no dia a dia da vida em sociedade) que demonstram quem de fato somos e de que lado verdadeiramente estamos.

“Se eu fosse Você-Sabe-Quem, seria assim que eu gostaria que você se sentisse, sozinho, pois desse modo não seria uma ameaça”, disse a Harry Potter sua encantadora colega Luna Lovegood. Quando Lord Voldemort reuniu seguidores e se infiltrou no Ministério da Magia, foi apenas por meio da organização coletiva, a despeito de suas eventuais imperfeições, que Harry e seus companheiros conseguiram resistir, e não de acordo com o individualismo largamente professado em nosso mundo pretensamente “pós-ideológico”.

Sendo assim, podemos dizer que a militância de esquerda no movimento estudantil, apesar dos inevitáveis desapontamentos que nos traz em relação a pessoas e situações, vale a pena. Por um lado, porque nos torna mais fortes na luta para fazer valer nossos ideais (para ter êxito, no entanto, toda forma de dogmatismo e sectarismo precisa ser afastada, haja vista o exemplo da Armada de Dumbledore e mesmo o da Ordem da Fênix). Por outro, porque essa experiência na universidade, com suas luzes e trevas, ao menos nos prepara (como a boa literatura) para a dura vida fora dela.


(Texto originalmente publicado na terceira edição do jornal O KULA, p. 18.)